Mochila nas costas, malas em punho, olhei pela última vez o meu quarto, e fui invadido por uma torrente de lembranças que se resumiam em saudade. Além de uma sensação de perda inerente ao fato de que algo que sempre foi “seu”, já não é mais.
Uma vez foi meu, mas agora era dela, inteiramente dela. Um pedaço de mim que ali haveria de ficar, apenas para ser dissecado e retirado, como um membro gangrenoso que não serve mais.
Malas prontas, mente afiada, decisão na ponta da alma, coração batendo na frente dos olhos, lágrimas transbordando em suor.
Ao chegar na sala encontro com ela sentada no sofá: expressão firme, braços cruzados, em um vestido velho de tom hostil. Ela estava hostil. Toda a aura a sua volta indicava a cólera dos ditadores, uma nuvem de gás lacrimogêneo atirada contra os manifestantes.
De meu lado eu gritava “independência ou morte!”. Firme e forte. Mas pronto para desistir ao menor sinal de recuo. Estava cansado das sucessivas batalhas. O que era um excelente motivo para partir, e um ótimo para ficar. Subitamente ela disse:
- Pra onde você vai?
- Vou dividir um AP com uns amigos por um tempo.
- Tá certo..... Fique com Deus.
- Obrigado pelos anos de dedicação e amor.
Dei-lhe um beijo tímido na testa, incoerente com o tamanho da minha vontade de abraçá-la.
Saí sem mais palavras, sem coragem de dizer nada. Nem ouvir nada. Nossas brigas, nosso orgulho e nossos egos inchados não nos permitiam mais. Infelizes inquilinos do peito de nós dois.
Infelizes de nós, menos que um, cada um.
Há muito tempo nossa capacidade de conversar já havia desaparecido, dando início a um embate homérico, uma guerra dos cem anos. Entre mortos e feridos, o nosso amor morreu.
Do lado de fora do apartamento eu esperava o elevador, a porta já fechada me indicava que não havia mais volta. Aquele era um caminho selado, e eu não deveria mais pensar sobre ele.
Muitas coisas na vida jamais voltam, e eu estava disposto a tomar o mesmo rumo, em frente e adiante, para nunca mais voltar. Não podíamos mai viver as nossas vidas sob um mesmo teto. Estávamos nos anulando.
Fiquei em dúvida se deixava ou não as chaves de “casa” com ela, afinal... a partir daquele momento eu seria uma visita. Paradoxalmente, eu a guardei, com a desculpa de que todos devem ter uma chave reserva com alguém, “nunca se sabe quando pode precisar de uma cópia, um socorro....”.
Quando dei por mim já estava na porta do carro, pronto para embarcar na nova jornada, a mais emocionante e temerosa até então.
Um punhado de dinheiro, muitos sonhos, pouca experiência, um mundo de fé na vida.
Vamos lá, desbravar o desbravado, redescobrir caminhos já marcados, construir a vida que já existe, e que eu não saberia até deixá-la, e a aquele lugar, e tudo que eles representam....
“Droga, esqueci a sacola com os sapatos!”
Voltei apressado para apanhar a bendita sacola. Um gesto repetido diariamente por anos: sair e voltar para buscar algo que esqueci. Ao entrar na “casa dela” ouvi o ruído de seu choro abafado no quarto, enquanto se lamentava ao telefone. Passei invisível, incapaz de ver suas lágrimas, saí feito um foguete, para que não me detivesse. Fugi.
Apenas respirei já dentro do elevador, enquanto descia, e com o peito apertado e pesado balbuciei.
- Adeus Mãe...